sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sob suas lentes

                Sob aquela lente viu a tevê. Foi batida, foi prisão, foi corrupção. Sob essa lente foi ao mercado, comprou o que devia e viu o que não devia, foi assaltado, ameaçado, dele levaram o dinheiro e os óculos. Trocou de lente
                Sob essa nova lente foi trabalhar. Viu o chefe, a secretária e papéis. Viu bastante papel, para quê, não se lembra, mas viu. E muito. Foi almoçar e viu a nota, o dinheiro, o guardanapo. Muito papel, pensou. Foi pra casa, tirou os óculos. Dormiu.
                Pôs novos óculos, sob esses, foi ao parque, viu crianças, viu aquela linda flor que nunca esquecerá, aquela outra linda, que também nunca esquecerá e viu que ali seria um bom lugar para levar os filhos que ainda não tinha. Viu o céu e nele, nuvens, onde os pássaros passeavam e levavam seus filhos para voar. O dia foi bom, mas a noite chegou e tirou os óculos. Os guardou bem guardados, para poder usar depois.
                Um par diferente para aquele dia diferente. Acordou de mal-humor e saiu, não queria ver ninguém, colocou os óculos ideais, não viu a multa recebida pelo carro mal estacionado, não viu os relatórios atrasados que empilhavam-se e escondiam sua mesa, não viu o chefe que gritava, não viu o telefone tocando incontáveis vezes, não viu uma nova multa pelo mesmo problema, não viu a curva fechada, não viu seu fim. Tiraram-lhe os óculos. Fecharam-lhe os olhos.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

História de [M]aria

Ela saiu de casa com o pesar de sempre, lembrou-se de dar um beijo no filho e mandá-lo dormir, ele deveria dormir enquanto ela estava fora, como sempre. “Qualquer coisa, chama sua irmã” e saiu.
Aquele era mais um dia que esperava a semana inteira para não acontecer. Preferia levar a vida simples a ir mais dias, para ela, todos eram iguais. Com barbas a fazer e cabelo ralo, mesmo que o de hoje fosse barbudo como um monte de palha e tivesse cabelos longos, para ela seria apenas o mesmo. E mais um.
Aprendeu com a mãe a ser como era. Quando pequena, não tivera um pai, nunca uma figura presente forte a se embasar. Mas amava a mãe, incondicionalmente, lembrou-se enquanto atravessava a rua em sua bota alta e com salto agulha, do episódio vivido há alguns anos. Sua mãe escondera dela por tanto tempo que os vestígios já eram interpretados com normalidade. Até aquele dia, o dia que saiu de casa e nunca mais voltou. O dia que saiu do Paraná e nunca mais voltou.
Chegou mais cedo e entrou no conjugado, bonito para os padrões do bairro. Foi à sala e viu sua mãe com visita. Muitos gritos e objetos quebrados se seguiram para culminar em uma porta batida ao som lamurioso de uma mãe envergonhada, que chora a ida de uma filha novata e que entendeu mal as intenções da mãe.
Ela se foi. A mãe e a filha. A filha, com amigos, foi à São Paulo, rancorosa e apregoada em sua raiva. A mãe se foi logo mais, dias mais, por assassinato, alguns dizem, mas confesso que foi por desgosto, por desgosto próprio, ouvi que ela não mais suportava ser quem nunca deixaria de ser, quem sua mãe era.
Já fixa em São Paulo, a filha se tornou uma mãe, uma esposa e uma empregada doméstica da elite. Mas por um marido rude e por umas agressões, acabou sendo mãe, solteira, de um filho a menos e vendedora. Vendedora como a mãe. E como sua própria filha, como descobriu mais tarde.
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Este trabalho de Rafael Trocatti, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.