Sob aquela lente viu a tevê. Foi batida, foi prisão, foi corrupção. Sob essa lente foi ao mercado, comprou o que devia e viu o que não devia, foi assaltado, ameaçado, dele levaram o dinheiro e os óculos. Trocou de lente
Sob essa nova lente foi trabalhar. Viu o chefe, a secretária e papéis. Viu bastante papel, para quê, não se lembra, mas viu. E muito. Foi almoçar e viu a nota, o dinheiro, o guardanapo. Muito papel, pensou. Foi pra casa, tirou os óculos. Dormiu.
Pôs novos óculos, sob esses, foi ao parque, viu crianças, viu aquela linda flor que nunca esquecerá, aquela outra linda, que também nunca esquecerá e viu que ali seria um bom lugar para levar os filhos que ainda não tinha. Viu o céu e nele, nuvens, onde os pássaros passeavam e levavam seus filhos para voar. O dia foi bom, mas a noite chegou e tirou os óculos. Os guardou bem guardados, para poder usar depois.
Um par diferente para aquele dia diferente. Acordou de mal-humor e saiu, não queria ver ninguém, colocou os óculos ideais, não viu a multa recebida pelo carro mal estacionado, não viu os relatórios atrasados que empilhavam-se e escondiam sua mesa, não viu o chefe que gritava, não viu o telefone tocando incontáveis vezes, não viu uma nova multa pelo mesmo problema, não viu a curva fechada, não viu seu fim. Tiraram-lhe os óculos. Fecharam-lhe os olhos.